quinta-feira, 17 de julho de 2014

Monólogo de um livro



Em cima de uma estante empoeirado, esquecida no alto de um quarto de despejo, está um livro qualquer. Este sou eu, um livro velho e feio. Um livro qualquer. Sou chamado assim mesmo. Não tenho mais nenhuma aparente utilidade. Aliás, não creio que alguém se lembre de mim para me dar alguma atenção. Minha capa está rasgada e desbotada. As únicas companhias que tenho são algumas traças, que me consomem. Por anos e anos não vejo um rosto humano.

Lembro-me do meu processo de produção. Meu criador teve que gastar anos para me idealizar. No começo eu não passava de ideias bagunçadas e desordenadas. Quando passei para o papel, quando finalmente comecei a sair do campo das ideias, comecei a me sentir real. Mas eu era apenas um bebê. Naquela época, as folhas ainda eram “impressas” em máquinas datilográficas. Depois de ser datilografado por inteiro, vieram as incessantes revisões. Revisões e mais revisões. Céus! Como fui rabiscado!
 

Finalmente fui levado para a Editora. Depois de mais revisões, acréscimos e supressões, enfim fui para a gráfica. Fui impresso diversas vezes, enviado para várias cidades, várias bibliotecas e livrarias.


Lembro-me do meu auge. Fui emprestado muitas vezes, passei por diversos pares de mãos. É... já fui famoso. Muitos olhinhos atentos já ficaram fixados em mim por horas seguidas. Muitas cabecinhas já se envolveram completamente em minha história. Bons tempos em que um bom livro era disputado. Bons tempos em que as pessoas chegavam a esperar semanas para me ler, para me ter em mãos. Conquistas, muitas conquistas... Eu já as tive...


Infelizmente, a leitura de livros pequenos, rápidos e fáceis tomaram o meu lugar. Fiquei cada vez mais esquecido. Minha venda foi caindo, até que parei de ser produzido. Passei a ser encontrado somente em sebos. Fui ficando mais barato, mais desvalorizado. Certa vez, uma mão enrugada e com tremedeiras me resgatou. Aquele velho cuidou de mim como se eu fosse um best-seller atual. Mas o velho morreu. Eu vi tudo, eu era sua única companhia. Seus filhos me acharam dias depois. Pensei que, finalmente, eu seria lido de novo. Mas eu não tenho ilustrações, letras grandes ou margens espaçosas. Fui parar em um quarto de despejo, cheio de coisas esquecidas. A única gravura que tenho está na minha capa amassada e descascada.


Já perdi a noção de tempo aqui nesse canto escuro. Já não sei mais quando é inverno e quando é verão. Já não sei mais o que acontece por aqui...

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Este conto foi publicado pela Editora Assis em parceria com a Sinpro Minas. É o conto com o qual consegui o terceiro lugar no I Concurso Literário Poética na Educação (falei dele aqui, aqui e aqui)
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Um comentário:

  1. Parabéns, Eloá! Além de lindo o seu conto, fica a alerta: quaquer livro sempre será útil para alguém - movimentar, doar, trocar, fazer circular...esse é o segredo!

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