Em cima de uma estante empoeirado, esquecida
no alto de um quarto de despejo, está um livro qualquer. Este sou eu, um livro
velho e feio. Um livro qualquer. Sou chamado assim mesmo. Não tenho mais
nenhuma aparente utilidade. Aliás, não creio que alguém se lembre de mim para
me dar alguma atenção. Minha capa está rasgada e desbotada. As únicas
companhias que tenho são algumas traças, que me consomem. Por anos e anos não vejo
um rosto humano.
Lembro-me
do meu processo de produção. Meu criador teve que gastar anos para me
idealizar. No começo eu não passava de ideias bagunçadas e desordenadas. Quando
passei para o papel, quando finalmente comecei a sair do campo das ideias,
comecei a me sentir real. Mas eu era apenas um bebê. Naquela época, as folhas
ainda eram “impressas” em máquinas datilográficas. Depois de ser datilografado
por inteiro, vieram as incessantes revisões. Revisões e mais revisões. Céus!
Como fui rabiscado!
Finalmente
fui levado para a Editora. Depois de mais revisões, acréscimos e supressões, enfim
fui para a gráfica. Fui impresso diversas vezes, enviado para várias cidades,
várias bibliotecas e livrarias.
Lembro-me
do meu auge. Fui emprestado muitas vezes, passei por diversos pares de mãos.
É... já fui famoso. Muitos olhinhos atentos já ficaram fixados em mim por horas
seguidas. Muitas cabecinhas já se envolveram completamente em minha história.
Bons tempos em que um bom livro era disputado. Bons tempos em que as pessoas
chegavam a esperar semanas para me ler, para me ter em mãos. Conquistas, muitas
conquistas... Eu já as tive...
Infelizmente,
a leitura de livros pequenos, rápidos e fáceis tomaram o meu lugar. Fiquei cada
vez mais esquecido. Minha venda foi caindo, até que parei de ser produzido.
Passei a ser encontrado somente em sebos. Fui ficando mais barato, mais
desvalorizado. Certa vez, uma mão enrugada e com tremedeiras me resgatou.
Aquele velho cuidou de mim como se eu fosse um best-seller atual. Mas o velho
morreu. Eu vi tudo, eu era sua única companhia. Seus filhos me acharam dias
depois. Pensei que, finalmente, eu seria lido de novo. Mas eu não tenho
ilustrações, letras grandes ou margens espaçosas. Fui parar em um quarto de
despejo, cheio de coisas esquecidas. A única gravura que tenho está na minha
capa amassada e descascada.
Já
perdi a noção de tempo aqui nesse canto escuro. Já não sei mais quando é
inverno e quando é verão. Já não sei mais o que acontece por aqui...
---------------------------
Este conto foi publicado pela Editora Assis em parceria com a Sinpro Minas. É o conto com o qual consegui o terceiro lugar no I Concurso Literário Poética na Educação (falei dele aqui, aqui e aqui)
---------------------------
Não se esqueça de curtir a página do #QVG no Facebook
Parabéns, Eloá! Além de lindo o seu conto, fica a alerta: quaquer livro sempre será útil para alguém - movimentar, doar, trocar, fazer circular...esse é o segredo!
ResponderExcluir